Home
poemas sem título

agora o lavabo fica do lado de fora das casas. o céu continua ali, o feijão, os amantes. as telas finas e lisas são maiores para o corpo inteiro e menores quando usadas como anéis de medir o calor. o livro ainda é um aliado. há alarmes ditando o tempo entre os corpos e, todas as vezes em que há o encontro entre nós, falamos rapidamente sobre como o mundo ainda tem abismos. você deixa o mesmo poema em minha cabeceira, sempre escrito com letras diferentes, como se fosse um homem diferente a cada vez:

dito o tempo que temos
sabe-se mais a prazo
seu rosto por perto
tanto a hora recua
quanto o nome que damos
torna a ser vago
vaga ainda o medo
diante da trégua
que o vírus deu à rua
seco seu verbo
o lado de dentro da voz
como oferta
tinge o risco de brando
nada mais além
dos corpos juntos
enfim
sismo aberto.


todo homem com quem estive
disse que eu deveria escrever um livro
um me chamou de covarde
por não colocar minhas coisas no papel
outro desenhou um esquema fácil, quase infantil
sobre como eu poderia fazer
teve o que pegou meus poemas e mandou escondido
ao editor
você prometeu que voltaria de muito longe
quando eu enfim escrevesse
este livro é para que os outros me deixem em paz


não sei quem a vizinha pretende enganar
quando finca flores de plástico no meio das
outras
mas nina sempre canta a linda rosa juvenil
quando avista no jardim
a pétala plástica de pé entre as flores secas
e deixamos que seja um milagre
a rosa da china também vingar
no chão do cerrado


seu silêncio é a maior coisa do mundo
perto dele não consigo ouvir as vozes das outras pessoas
nem buzinas
nem instruções
o que torna tudo muito perigoso
até andar na rua
não leio mais livros enquanto seu silêncio
dura
desligo o rádio
o som tromba nas coisas
no seu silêncio
o sol
que as folhas das árvores filtram
para ao chegar perto
contorna o grande corpo do seu silêncio
e deita na rua, vencido
seu silêncio vence a noite
pelo cansaço
é um pouco infantil
o seu silêncio
o modo como ele me ronda as pernas
e pede coisas impossíveis
quer a fruta ainda verde
o seu silêncio
é velho também
quando quer.
o seu silêncio fica lembrando,
lembrando
de quando você falava
e remói com mais silêncio
a antiga mudez
está aqui agora
o seu silêncio
enquanto escrevo
ocupa a cadeira ao lado
com ares de que sabe muito bem
o que faz
o seu silêncio, obediente,
me deixa ficar.


quando alguém fala contigo
usando uma língua
que não é a sua
o corpo é quem responde
as mãos fazem as perguntas
sobre como deve ser a chuva naquele país
como se o país estivesse ali
nos sulcos da velha pele
na cintura todos os combates
e covardias
nas orelhas o futuro em forma de gritos infantis (pulos n'água, rayuelas)
entre os dedos do pé
as tragédias que uma bota esconde, uma sola então solo firme a guardar o que não pode ser enterrado
nas pálpebras o caminho de árvores da primeira rua de sua vida
cosmos era o nome daquela flor amarela
a voz que vem da língua bolina um mapa,
o que deve evitar a deriva
mas nas mãos do viajante estão prontos para zarpar dois compatriotas: o amor e a dúvida.


o primeiro sinal chegou quando recebi seu e-mail
no fim da mensagem você assinava com uma palavra estranha antes do seu nome,
logo depois aquela mesma palavra era colocada ali, antes do meu nome,
e aí vinha um "você lembra né?
eu vou lembrar pra sempre."
minha agonia durou algumas horas e
depois o fato de ter esquecido a nossa palavra sumiu
acabei não respondendo porque tive vergonha
de ter perdido a nossa palavra
e deixei sem resposta também a sua vontade de reencontro, as suas saudades
achei que me lembraria enquanto estivesse pensando em outra coisa
e justamente quando não pensava em nada especial
soube de sua morte
uma doença rara, seu sumiço no melhor da vida, logo depois de ter reconhecido o amor
(também raro) que você mereceu tanto
senti muito por ter esquecido nosso combinado feito numa tarde abafada do verão de 1999
quando nós duas achávamos que o mundo acabaria logo e o "pra sempre" era um prometido
que amenizava e deixava existir o futuro
às vezes sonho que me lembro da nossa palavra e sopro no ouvido de sua filha
que hoje tem quase a idade da minha filha
a criança está parada e me olha como se tivesse acabado de ganhar um presente quebrado:
uma caixa de música muda, um livro com dentes ou um suspiro oco
eterna nos olhos da menina, você sabe que demorei muito mais do que deveria.


depois de um mês sem escutar a tua voz
ouvirei a minha voz
a de antes de ti.


o espaço
o que há entre nós não é o espaço nem a distância, é uma parede fina, derrubável, transparente.
o barulho da sua voz não chega todo mas vem em pedaços pelo alto, e encontra meus ouvidos quando estou no chão escrevendo.
dos fragmentos que possuo, separo a lembrança da invenção, e não chamo de mentira, embrulho em um pedaço de tecido onde escrevo "apenas".
as partes do meu corpo onde você ainda existe são inspecionadas diariamente. anoto no caderno sem linhas cada centímetro que te perde, sei que apontar para as estrelas é errado, então escrevo no início de cada anotação "foi aqui".
vejo as coisas com mais cuidado e demoro como se te olhasse. quando torno a olhar depressa, sinto que te perdi. que te deixei passar num arbusto do acostamento, na gola da camisa de um desconhecido, no resto de creme no fundo da colher, na nota fiscal borrada de álcool. separo todos os objetos em que te perdi numa caixa de papelão etiquetada: "tenho".
às vezes apoio as costas na parede fina de onde te vejo e onde você não pode me ver. fico lá até ter a certeza que me viu, mesmo que seja em outro corpo.


acabou que resolvi não te desenhar por medo de ficar bom e eu ter que cuidar do papel como se fosse um animal de estimação
acabou que fiquei na porta porque queria ver se você também era interessante de longe (as pessoas falavam com você como se já tivessem feito esse teste antes)
acabou que preferi não falar com você sobre como as pessoas idosas devem evitar seus olhos por constatarem que viveram dezenas de anos sem eles
acabou que evitei ligar a televisão porque sabia que todas as notícias seriam sobre você. os filmes sobre sua infância, os programas de variedades sobre suas manias noturnas e os humoristas de domingo te imitariam mal
acabou que deixei seu presente no aparador porque percebi que todos os objetos da casa também queriam sua atenção
acabou que me descuidei e passei por você enquanto procurava uma bebida, nos esbarramos e pude sentir o quanto seu ombro estava satisfeito em participar do seu corpo
acabou que não aceitei a carona porque gostava daquele trajeto sem a sua companhia e queria que as calçadas, cascalhos e vasos de planta continuassem importantes
acabou que achei melhor não dizer a todas as pessoas que conheço para adotarem sua postura
acabou que segurei o riso quando alguém na mesa disse que chovia fora de hora por causa de um fenômeno extratropical. disse seu nome em silêncio porque sabia que a chuva também era culpa sua
acabou que tive coragem de não fazer nada com tudo que senti. e foi bom.


antes do âmbar
descansa
o amanhã
deito os cabelos
em tua falta
ninguém diz
que vens de novo
ao mundo
que nos teve
e acabou.
se eu lembro
ainda tenho.


quando estiver claro o que liga os fios
e junta pequenas contas em torno da lã de seus cabelos
quando as frases voarem tão próximas
e for difícil evitar o beijo entre as palavras.
quando o tomo do livro dois acontecer de ser seu corpo ímpar e vário
e sua pele aprender meu humor
(sendo prudente as coisas todas fugirem pela janela).
quando o riso abrir tão largo e destronar a lógica
e tudo tingir tudo enquanto
uma cor passa à outra,
logo haverá tanto de sua boca
na cor do pão quanto do céu.
quando o círculo de fogo se abrir maior
engolindo o tédio dos apartamentos de cima.
aí separam-se as mãos
e há um barulho de âncora
a levitar
é o fim do imenso aprender
entre os corpos,
e tudo bem.


o remédio diz que me cura
mas, antes, eu que te arranque
pelos cabelos
de mim
você não pode, ainda pegado ao meu corpo,
beber toda a parte que sara.


a mão sobe até a nuca
e chega aos cabelos
(há bastante)
meia cama de cabelos
nossos
a mão desce o corpo
e volta aos cabelos
penso em como direi
no poema
que molhei seus cabelos
com minhas mãos
mesmo sabendo que depois de mim
você lava o corpo mas nunca os cabelos
porque não quer deixar que vejam
que molhou os cabelos
as pessoas
para as quais você deve retornar
seco.


é simples a feitura deste poema.
descanso o caderno no colo,
solto os cabelos
e fecho os olhos.
escrevo suas últimas palavras
com minha voz:
ainda não fazem sentido


o colecionador
o vento
passa pelas pernas
do velho
cuida das cadeiras caídas
na entrada do bar
trata com carinho
as moscas que um dia
deixaram tudo às moscas.
seu corpo de costas
vê o vento entrar pelos
cabelos e pescoço
trata de fazer paragem
é o descanso de quem
vem voraz
mas aprende, como eu,
a se fazer calmo
antes ainda de te olhar nos olhos.


por toda a casa
pendendo da cama
deitados no chão
encolhidos no canto
aos pedaços
inteiros e
dando as mãos
uns nos outros
retidos
sala afora suspensos
na canção
agarrados
na roupa do dia
contra a luz e no escuro
dentro de livros, escapados
vivendo presos entre páginas
férteis nos vasos de plantas
feios no meio das flores
embolados
escondidos
os mais antigos
pairando no tempo
soprados
em minha boca e olhos
estão
seus cabelos
que varro,
afasto
mas deixo ficar
por serem
mansos.


a mulher está mais autorizada a amar o corpo gordo de um homem
que seu próprio corpo gordo.
e a ter uma memória terna daquele corpo
exato
bonito
importante
o corpo gordo que parece morar num mundo diferente
do mundo onde vive o corpo gordo da mulher
o corpo gordo do homem
quer amar
o corpo magro de uma mulher
que ainda não gosta plenamente do seu próprio corpo
mas ama sem ressalvas o corpo gordo do homem.


há dois meses, uma semana e quatro dias durmo segurando o coração
não é para nada
além de vigiar se a coisa vai mal
é por ali que me chega o susto de descobrir que vivo de novo o mesmo medo antigo
se o peito bate bem forte, posso ainda continuar as tarefas do dia, os planos de feira
se o peito salta um pouco, está bem, deixo o calendário me levar pela mão, não custa nada não resistir
se faz a calma e o favor de não bater nada, o coração, essa carne parada a peso de cachorro morto, me assusta demais
não durmo aquela noite e nas outras
quieto e também surdo, o peito nem tenta fingir que está vivo
a cada vez que pausa, parece um relógio que para um instante testando se ainda vejo as horas
o coração imóvel aguarda que um rosto venha do travesseiro e conte algo importante
como o outro nome da palavra orvalho
aí sim a vida torna a andar no ritmo das coisas
e o peito bate um pouco, aviso abafado pela voz ansiosa que gosta de dar a notícia de uma vez ao resto do corpo:
– está tudo bem, é simples e não vai passar.


disse o médico que precisa de um pedaço
do meu corpo.
esse pedaço vai fazer uma viagem
e dizer o que eu tenho.
pouco antes de sentir medo,
lembrei de várias partes minhas
que alguém levou
sem nem dizer nada.


experimenta quebrar um dente
e passear a língua pelo buraco, rente
o que ela sente, enorme cratera
é cesura apenas
tímida fenda

não é que seja mentira da língua
a língua nunca mente
cava algo no oco
procura
retorna inútil e se deita
decidida a esquecer

ao voltar, pouco depois
descobre que deve guardar o vão
imaginar grandes terras
onde nada existe
tender ao sólido como salvação
a língua pensa que o dente é um continente